/Confira entrevista com a psiquiatra Thaís Bassi Cardoso, médica assistente no Hospital Allan Kardec: ‘Com a covid-19, a gente viu aumentar – e muito – os sintomas mentais’

Confira entrevista com a psiquiatra Thaís Bassi Cardoso, médica assistente no Hospital Allan Kardec: ‘Com a covid-19, a gente viu aumentar – e muito – os sintomas mentais’

  • Psiquiatra Thaís Bassi Cardoso, médica assistente no Hospital Allan Kardec. – (Foto: Divulgação)

Em meio ao Janeiro Branco, psiquiatra do Hospital Allan Kardec fala sobre a importância de discutir e cuidar da saúde mental, principalmente em meio ao período pandêmico que o mundo vive

Nunca, como agora em tempos de pandemia, o cuidado e atenção com a saúde mental ganharam tanta relevância. E, assim, o Janeiro Branco – mês em que a população é convidada a debater os assuntos ligados à mente – se reveste de ainda mais importância. Para a psiquiatra Thaís Bassi Cardoso, médica assistente no Hospital Allan Kardec, está cada vez mais claro para a população que cada ser humano pode, sim, precisar de ajuda na área de saúde mental, em algum momento da vida. E isso não é visto mais como um problema. “E esse, para mim, acaba sendo um motivo de otimismo em frente ao caos pandêmico que a gente está vivendo”, afirmou a profissional. Acompanhe a seguir a entrevista com dra. Thaís.

  • O que é o Janeiro Branco?

A gente pode ver que, em todos os meses do ano, são feitas campanhas como uma forma de conscientização da população a respeito dos temas de saúde que são mais prevalentes, mais importantes. É uma conscientização pensando, tanto na prevenção, quanto na busca por ajuda, desmistificação dos conceitos que a gente tem saúde-doença. E alguns exemplos que são mais conhecidos nossos, que eu poderia citar, seriam o Outubro Rosa, que é a campanha do câncer de mama, e o Novembro Azul, e a prevenção do câncer de próstata. A gente tem também o Setembro Amarelo, que é o mês da prevenção do suicídio. E temos também o Janeiro Branco, como uma forma de promoção em Saúde Mental, e que teve como inspiração boa parte dessas campanhas que eu acabei de citar.

  • Qual a importância de destacar e discutir a Saúde Mental durante um mês?

A Organização Mundial de Saúde, a OMS, tem mostrado alguns dados são alarmantes e algumas projeções que também são bem preocupantes, no que diz respeito ao aumento na taxa dos transtornos mentais. O que significa, de uma forma direta e indireta, que a gente está falando em aumento da mortalidade, em aumento de morbidade, incapacidade funcional, laboral, além, também, de vários outros prejuízos sociais na vida do indivíduo.

A gente tem, em média, 800 mil casos de suicídio no mundo ao longo do ano. A depressão foi a principal causa de afastamento do trabalho em 2020 e ficou à frente de doença cardiovascular, por exemplo, e doença ortopédica, que também é bem frequente. O Brasil é o campeão mundial de ansiedade. Esses são só alguns dados, mas são uma mostra do que a gente está vivendo e isso, por si só, já justifica a gente abordar com muito cuidado esse tema, que é muito delicado. Foi então que, em 2014, um grupo de psicólogos “mineirinhos”, lá de Uberlândia, elaboraram uma proposta do Janeiro Branco, inspirado na campanha do Outubro Rosa, principalmente.

Aquilo, que teve início mais como uma forma local, regional, ao longo dos anos, principalmente a partir de 2016, vem crescendo de uma forma intensa. Ainda bem, né? E passou a adquirir um caráter nacional. Isso graças ao empenho dos estudantes, dos profissionais, da área PSI – tanto psicólogo, psiquiatra, alunos de residência e especialização, terapeuta ocupacional, nutricionista e vários outros.

É feita, então, uma divulgação, uma troca de conhecimento, informação, seja pela internet, rádio, programa de TV, as ações locais mesmo nas instituições que podem ser tanto públicas, quanto privadas, plano de saúde, UBS, hospital, ambulatório e os espaços comunitários também. É óbvio que esse complexo assunto aí da Saúde Mental não vai se esgotar ao longo desse mês de janeiro.

A importância (do Janeiro Branco), a gente percebe isso, que se faz necessário, ao longo do ano inteiro. Mas este mês acaba sendo um mês de destaque, que é dado a esse tema e que permite à gente, que abre a possibilidade de a gente fornecer a informação para a população, esclarecer sobre como agir, o que pode ser feito toda vez que a gente identifica alguém que esteja em sofrimento mental.

  • Hoje vemos que a Saúde Mental é mais debatida entre a sociedade, mas podemos dizer que ainda há muita resistência?

Para mim é nítido, hoje, que esse tema tem sido mais debatido entre a sociedade, mas que ainda a gente encontra muita resistência. Por muito tempo, reinava aquele estigma de que o psiquiatra era o médico de louco, várias piadinhas circulando a respeito do atendimento em psiquiatria. Um exemplo: tem gente que brinca que a diferença entre o paciente e o psiquiatra é que o psiquiatra tem a chave do consultório. A gente percebe até mesmo no meio médico. Muitas vezes, a gente acaba sendo menosprezado enquanto psiquiatra. Tudo isso faz com que as pessoas demorem a buscar ajuda, seja por medo, preconceito, resistência.

  • Com a pandemia, esses problemas aumentaram?

Eu não queria mostrar uma positividade, assim um otimismo tóxico, agora. É claro que é a pandemia tem sido catastrófica. Destruiu várias vidas, várias famílias. Acho que os prejuízos são incontáveis e de várias ordens. Mas apesar desse cenário trágico, um exercício que eu acho interessante de a gente fazer é tentar observar que, assim, em meio a tudo isso, o que dá para a gente aprender? Uma das lições que eu tenho visto diz respeito justamente a isso, que é o estigma da psiquiatria. Por quê? Com a covid-19, a gente viu aumentar – e muito – os sintomas mentais.

Como esse processo que a gente vive é dinâmico e a pandemia ainda não acabou, é bem possível que esses dados sofram alguma modificação ao longo do tempo. Mas, de maneira geral, a gente viu uma piora dos sintomas em quem já era paciente atendido em Saúde Mental. A gente viu também uma incidência maior de transtorno, tanto depressivo quanto ansioso, nos pacientes que tiveram covid. A gente viu também casos associados à infecção pelo coronavírus; alteração neurológica, como, por exemplo, encefalite; muito prejuízo de atenção, prejuízo de memória. E para ser mais precisa, uma metanálise mostra que teve um aumento de 30% dos transtornos mentais neuropsiquiátricos nos pacientes que tiveram covid.

Uma outra coisa que a gente percebe é que os adolescentes e os escolares foram mais afetados. O Burnout, ou esgotamento em português, nos profissionais de saúde da linha de frente…

Mas por outro lado, um dado interessante, é que a população de uma forma geral experimentou, sim, o aumento dos sintomas. Mas percebam que eu falo sintoma e não transtorno. Então, aumento nos sintomas ansiosos e depressivos, que a gente pode acabar considerando como reativo a essa situação, como se fosse uma forma de adaptação que a gente está vivendo. E interessante também que esses sintomas, depois de um ano, voltaram ao patamar dos níveis que a gente tinha antes da pandemia, os níveis pré-pandemia. Ou seja, isso mostra que apesar de a gente estar sofrendo com isso, a gente tem conseguido agora apresentar uma certa resiliência e uma capacidade de adaptação. A pergunta é: até quando? Mas a gente tem visto isso. E eu acho que todo esse chacoalhão e os casos que a gente vê pipocando, tanto em hospital quanto em consultório, felizmente fizeram com que boa parte das pessoas percebesse que é – entre aspas – normal não se sentir bem e plenamente adaptado, a maior parte do tempo. E que isso não necessariamente é sinal de loucura, de doideira ou qualquer outra coisa do tipo.

Tem ficado claro que cada um de nós pode precisar de ajuda, em algum momento da vida. E esse, para mim, acaba sendo um motivo de otimismo em frente ao caos pandêmico que a gente está vivendo.

  • Antes falava-se muito em “doença mental” e hoje o termo “saúde mental” é mais utilizado. Mudanças como essa ajudam a desmistificar o tema?

E falando também em estigma e preconceito, é interessante a gente perceber que antes falava-se muito em doença mental e hoje a gente tem observado algumas mudanças graduais nos termos que a gente usa. Apesar de serem algumas mudanças que, no primeiro momento, possam parecer simples, mostram uma grande quebra de paradigma.
Hoje em dia, a gente diz “transtorno” mental e não “doença”. O termo “psiquiatria” vem, muitas vezes, sendo substituído por “saúde mental”.

E o que isso significa em termos práticos? A gente tira o paciente do patamar de doente e a gente considera que ele pode, sim, ter uma variação do estado de saúde, que pode causar um incômodo, que pode comprometer o dia a dia dele, causa sofrimento, prejuízo, tanto para ele quanto nas relações interpessoais, no trabalho, com a família, com os amigos, por exemplo. E essa mudança é uma coisa muito positiva.

  • Podemos falar em problemas, transtornos mentais decorrentes do modo de vida da sociedade atual?

De um modo geral, a gente tem visto uma tendência de aumento nos transtornos mentais. Isso pode acontecer tanto porque a gente tem falado mais em Saúde Mental, mas também pelo nosso modo de viver a vida. Tem uma frase que eu sempre falo com os pacientes, que diz: “Não é sinal de saúde ser adaptado a uma sociedade extremamente doente”. Então, eu não acho saudável, por exemplo, um funcionário tomar medicação para dormir, outra para ele se manter ativo, ficar disposto e com energia ao longo do dia. E junto a gente associa um antidepressivo para ele dar conta de se manter em um trabalho que, às vezes, é exaustivo e deixa ele esgotado. O termo Burnout nunca foi tão usado. E eu também não acho saudável a gente ver a cobrança, a autocobrança extrema e autodestrutiva que a gente vê nos estudantes universitários, que estão pipocando nos consultórios médicos.

E como eu falei antes, o Brasil é o “número um” em ansiedade no mundo. Quando a gente fala de depressão, é o quarto na América Latina. E isso não pode ser considerado normal. Eu acho que a gente precisa, com urgência, repensar o nosso modo de vida e de enfrentamento das dificuldades que a gente tem ao longo da vida.

  • A dra. tem dicas de como a população pode cuidar da saúde mental, em meio a esse vai-e-vem da pandemia?

Há algumas dicas que eu poderia pensar a respeito disso, do autocuidado, justamente nesse período delicado que a gente está vivendo e que passa justamente por isso, o nosso modo de vida. Eu acredito assim fortemente na prevenção. Aquela máxima que a gente vê “prevenir é melhor que remediar”, para mim sempre foi muito verdadeira. Na medida do possível, uma alimentação com escolhas mais conscientes; atividade física, pensando tanto na melhora cardiovascular, de resistência, hipertrofia e tal, mas também na promoção de bem-estar emocional, porque a gente sabe, é científico, que há aumento das endorfinas, que isso também diminui a sensação de ansiedade, de depressão; uma boa noite de sono; interação social, na medida do possível – ou seja, videochamada também está valendo.

São todas essas medidas não medicamentosas que podem ajudar bastante, ser um grande aliado, um fator protetor quando a gente pensa em manter a nossa sanidade mental.

  • Por fim, a pessoa que sinta que necessita de ajuda na área de Saúde Mental ou até um parente ou conhecido, como proceder?

Se você ou alguém próximo sentir que, mesmo com essas medidas não medicamentosas, seguindo essas orientações, está difícil caminhar e continuar, é a hora de a gente pôr o nosso próprio preconceito de lado e buscar ajuda. E essa ajuda pode ser desde os grupos sociais, grupo de autoajuda, grupo que envolve religiosidade, espiritualidade, quanto também uma ajuda mais formal: a psicoterapia, com os psicólogos, é sempre uma ferramenta muito importante de autoconhecimento e que pode ajudar a gente a promover em nós mesmos algumas mudanças que, às vezes antes, seriam impensáveis.

E além disso, uma avaliação do psiquiatra pode ser útil. Isso não quer dizer que você vai sair do consultório com uma prescrição de tarja preta na mão. Mas, muitas vezes, é uma questão de receber uma orientação que é importante naquele momento. Acho que se eu pudesse resumir, bem rapidamente o que eu falei aqui, para mim o principal seria: a nossa vida, a sua vida é muito preciosa. Não vale, por resistência ou qualquer outro motivo que seja, arrastar uma situação que é penosa e que vai ser fonte de sofrimento. E eu não estou dizendo, com isso, que o tratamento vai eliminar qualquer dificuldade que é inerente da vida, que a gente vai passar por elas. Mas pode tornar essa jornada muito mais leve. Então, para mim, a mensagem final seria: “cuidem-se”.